segunda-feira, junho 04, 2012


Tchaikovski
Sinfonia nº 6 em Si Menor, Op.74 - “Patética”


a agonia é a surpresa dos caminhos
imperfeitos. por que rumos, por que
rotas vão os meus passos ambulantes?
as árvores – a terra da alegria,
ó rui belo! – há muito que lhes apodreceram os frutos,
e a seiva resguarda-se ou esconde-
-se na margem dos troncos, no aumento
da sede substantiva.
aparta-se o meu corpo fruto, aperta o meu corpo árvore.
decúbito regresso à primeira água.
acordam os faunos, despertam os sátiros,
bebem a água dos deuses e das ninfas;
envenenam o chão, abraçam-se na
lascívia do trovão cantando coros
impossíveis. despedaçam-se ramos
desfazem-se as copas e uma tropa
pândega delicia-se com os seus filhos.
há luz que já não parece luz e
a escuridão é o refúgio do
sopro ferido. as flores iluminam-se
retendo réstias, linhas de sorriso.

a cidade brinca na água os olhos
dos habitantes. uma felicidade
rústica corre pelas avenidas
dos amantes sem hora, na bebedeira
límpida, rezando promessas que
se perdem na tempestade. a bondade
adolescente prende-se ao sol da tarde
e sobre a sombra dos navios, ao longe,
o eco descansa a voz no horizonte de bruma.

um baile de folhas vem com o vento. os
frutos maduros cheiram a todas as árvores
e um céu de cores explode iluminando
os caminhos apostólicamente.
a boa-nova voa com os cavalos com asas
rasando os cumes e as copas.
o peito tem a largura da alegria
e os dedos caem com o peso da esperança.

inquilinos, os fantasmas descobrem os lábios.
bocas de fogo têm línguas que bebem
o tronco, a mátria da seiva
a radícula genealógica do pomo,
e morta, a árvore deixa no chão, submersa,
uma ferida com pequenos caules frágeis
que resistem aos passos na carícia dos vermes.


josé félix in a casa submersa


domingo, abril 29, 2012


    a liturgia dos dias


    
    não me disseram que os arbustos falam
    a linguagem dos gnomos e
    que os pássaros desenham, de manhã
    sons rondeando as pedras em silêncio.
    
    tudo isso soube-lo quando a voz de meu pai
    voltou a ser o sacrilégio da casa.
    
    na viagem interrompida caminha
    sobre a mobília, na leveza do pó
    e nas paredes com fotografias
    onde a ausência é um missório
    no discurso religioso do tempo.
    
    é nos gestos mais simples dos meus próprios
    gestos, que a presença ausente
    se poliniza na liturgia dos dias.
    
    a palavra, essa, corrompendo a fé
    desliza breve nos ouvidos secos
    quando apetece a comunhão
    no pecado lavado de confidências.
    
    os duendes, no seu labor, cativam
    relíquias suspensas da hera
    que abandona as raízes como hóstias
    no conforto dos crentes.
    
    josé félix in a casa submersa

domingo, abril 15, 2012

a mim basta-me o olhar sem mais palavras...


auri sacra fames

viver um dia com normalidade
é ter o olhar cubista, no sentido
que picasso lhe dá. é que são várias
as formas de rever os dias idos.
o olhar é feito sempre de passados.
o tempo é longo na serenidade.
ver multifacetadamente os dias
sem adjectivos é o poder dos fracos,
e os outros, bem, os outros não se importam
com a substância temporal da vida.
carpe diem já o disse horácio
nas odes. mas virgílio, cidadão,
conhecendo pois da fatalidade
de roma e que do mar viria eneias,
sabia bem que da fome execrável
do ouro também se vive cada dia.
a mim basta-me o olhar sem mais palavras
do indivíduo ou de uma multidão
a tentar augurar o seu futuro
enquanto os corvos grasnam sobre os restos
do império apodrecido pelos séculos.



josé félix, Quatro Poetas da Net, Edições Sete Sílabas, Lisboa, 2002

sábado, abril 07, 2012

o teu rosto é um puzzle


Puzzle 1


cortes de sombra
rostos admirados.

tempo imperfeito na composição
desta moldura que suporta o quadro

na colecção de vidas.

o teu rosto é um puzzle
que vou compondo no laborioso
ofício de viver.


José Félix in Puzzle

domingo, março 25, 2012

a restrita medida do meu tempo, é porque estou além de qualquer medida mesmo restrita da temporalidade.


A ocupação do tempo


(Angelo Riccell Piovischini)

há um bonsai na estante, ao pé de livros
com as lombadas a preceito.
a árvore anã,
na atrofia de raízes, tem
os seus contemplativos que pensam, que
o tempo se constrói na castração
metódica dos ramos indicadores,
da passagem do tempo pelo tempo.
não, não contemplo o tempo no bonsai;
eu sou o próprio tempo na
rega das plantas, no aroma das flores;
sou a porta entreaberta do teu sopro.
sim, do sopro da fala que conduz
o crânio  o suporte do teu corpo
que vem até mim e dá-se.

saboreio nas pétalas violetas
o pólen que me leva
à visão do jardim da própria sala,
onde fico no tempo ocupado
de mim, de ti e de todas as plantas
que resistem ao olhar crítico. bonsai
perdido entre os livros. porque as coisas
não são simples assim, se por acaso,
não sendo acaso, tenho no bonsai
a restrita medida do meu tempo,
é porque estou além de qualquer medida
mesmo restrita da temporalidade.
é porque escrevo versos sobre o tempo,
que me interessam as frases inclinadas
nas sombras, sede das pedras quinadas
por um escultor, num lago qualquer.

ó, as pedras nas águas fertilizam
lembranças proibidas e delíquas
e me faz esquecer o cheiro da erva
que piso todo o dia. piso a erva
para restrigir o tempo medido.

reparai porque os deuses são (in)temporais.
desenhamos-lhes o infinito tempo
e até na própria morte vivem vida
com os adoradores de circunstância.
as circunstâncias são o tempo todo
e só quando colhemos uma flor
nos damos conta, dou-me donta, desinteressado
de um bonsai esquecido numa estante
que não diz nada sobre o tempo ocupado.
não gosto do bonsai, e deitá-lo fora
talvez dilua noutro tempo o tempo
que eu não quero.

porque o tempo.
porque o tempo. porquê

josé félix