terça-feira, dezembro 20, 2011

cartas que falam da intimidade mais íntima como a agonia de cortar uma flor

cartas íntimas


já não se escrevem cartas íntimas como antes
daquelas que começam por meu caro amigo
senhor fulano caro senhor com o nome
a data e o local de onde era remetida.

cartas que falam da intimidade mais íntima
como a agonia de cortar uma flor cerce
para dizer de um beijo perdido na boca
presa à fala de uma palavra interdita.

nem só de tempo se construíam as frases
porque o desenho da semântica vivida
tornava mais próximo o outro na leitura fácil
lúdica quase da interpretação das plantas.

pois era assim que toda a gente começava
por decifrar a cor das pétalas colhidas
a cada dia ou numa frase do papel
página que aconchega as emoções tardias

na confissão aberta da palma da mão.
como ficava mais perto aquele endereço
no movimento simples dos dedos, da escrita,
numa carícia breve à sombra da memória,

beijando as margens de uma carta provisória,
conforme as linhas, rios cheios de palavras,
intenções da alma, o fogo ardido até que acabe
a lenha e cure o lanho de um olhar ferido.

talvez escreva a carta como antigamente
na folha de uma planta verde. na nervura
desenho um sol antigo e no limbo o azedume
é no crisol do tempo. permanecerá

até que o vento limpe as folhas de fuligem.
meu caro amigo o tempo tem vestígios lúcidos
convenientes à contemplação do fruto
grado maduro à espera de soltar sementes

em terra fértil onde vão todas as águas
e depois brotam das arestas da memória
as sombras de uma árvore reconstruída
uma bebida de palavras pronunciadas

no olhar penumbra, a escrita umbrátil que se prende
ao fio dos lábios que só pedem a presença
do espelho das palavras fixas na outra margem.
a carta, assim escrita, feita de silêncio

de imagens lidas na travessa doutro tempo
acariciada pelos dedos, permanência
de afectos e emoções navegadas nas rotas.
há sempre tempo para a carta de intenções.


José Félix

Nenhum comentário:

Postar um comentário